quinta-feira, 9 de abril de 2009

Uma Páscoa diferente

Vida de Lenito

Era uma vez um caso. O caso de Lenito, que conduziu do Barreiro até Sintra e que quando chegou ao destino morreu de enfarte.

Na minha humilde e terrena modéstia pergunto: porque teve ele de fazer aquela viagem, fechado no carro, parado nos engarrafamentos da ponte e da A19 para depois morrer? Não poderia ter morrido antes? Não lhe podia ter sido poupado o sacrifício da viagem?

Que sentido de humor sinistro governa a perversidade do destino individual de todas as personagens que se mexem à nossa volta?

É que conduzir do Barreiro até Sintra era perfeitamente dispensável. E tudo para quê? Porquê?

Era Páscoa, dia dez de Março, e a tradição instituída no ano anterior obrigava-o a jantar na casa da mãe, em Setúbal; a dormir na casa da irmã, no Barreiro, na véspera, e almoçar na casa da sogra, em Sintra, no domingo. Vendo bem, era uma tradição mais conveniente do que a dos três anos anteriores, com a obrigação de ir a Viseu almoçar a casa dos pais da sogra. A morte dos mesmos num acidente de viação, em Lagos, no Verão, deslocara o centro da Páscoa de Viseu para Sintra. Abençoada.

O que o surpreendia era a falta de argumentos sempre que se decidia o itinerário para a Páscoa, que era tradicional, como era óbvio. Intocável e sagrado. O que lhe apetecia mesmo, todos os anos, era largar tudo e ficar em casa, sem falar, ou ir para uma praia o mais longe possível de Viseu, de Sintra ou de Lagos. Mas acabava sempre por ceder. Os miúdos

Ela tratava de tudo. Amêndoas, ovos de chocolate, a escola deles, os castigos para as más notas, as repreensões, a família dele e os pais dela, irmãos, cunhados, amigos. E depois deixava-se ficar junto da mãe à espera que ele, o motorista que a fora levar, regressasse a horas para o almoço de família depois de cumprir o programa de festas em Setúbal e no Barreiro.

O que mais gostava era o alívio depois de tudo acabar, e voltar ao seu sofá, na sua sala de estar, na sua casa, no beco mais estreito do bairro da Socasa, entre a escola e o prado.

Em geral, em Fevereiro definia-se a estratégia. Ele tentava sempre sugerir a alternativa habitual: de fazer uma Páscoa diferente, mas a resposta era sempre a mesma. Que disparate! Queria matar a mãe de desgosto? E depois, os miúdos, que tinham de ver a avó, que ela nunca os via, que era uma pena. Que talvez no ano seguinte se pensasse nisso, ou quando os miúdos fossem mais crescidos. Seria inconveniente não ir ver a senhora a Viseu ou a Sintra. E ele a guiar.

E assim foi. Sexta-feira, feriado, carregou o carro de sacos e fez o trajecto habitual até Setúbal. A mãe, na mesma. Queixosa. Que nunca a visitavam. E como estavam os miúdos. não os conhecia. E a irmã, no Barreiro, nunca ia. E os filhos dela, se bem que um deles era dela e não dele, mas hoje em dia as coisas eram diferentes. Sair para ver o mar? Nem pensar. A saúde não o permitia. Quando muito um galão no café da esquina.

Pouco a pouco, o monólogo dava lugar ao silêncio e o queixume à cumplicidade. Nunca mais ouviste falar dele? Não. E ficavam por .

E assim se passava a sexta-feira e o sábado, dia que era ocupado no hipermercado, a ajudar a mãe nas compras e a carregar o carro de mais sacos: hortaliça para a irmã, fruta para os pequenos, pacotes de leite. E a deixava, curvada, junto à porta de alumínio a acenar. Até à próxima, no Natal.

O jantar na casa da irmã era como uma injecção indolor dada num hospital particular onde todos os doentes são igualmente bem tratados, desde que paguem. Jantavam, viam um DVD escolhido pelo mais novo e iam-se deitar. Dormia no sofá da sala, com repetidas recomendações para não se levantar no meio da noite para não acordar os miúdos. De manhã levantava-se e comia de acordo com o horário e a ementa do mais novo, saíam para o parque do jardim mais próximo e ali ficavam presos dentro do gradeamento de plástico colorido a transportar o mais novo do baloiço grafitado de verde para o escorrega grafitado de azul. Almoçavam no McDonald’s, presente do tio, e ainda deixava um cheque para ajudar na comida. Ele, é claro, não podia comer pois tinha de estar em Sintra uma hora depois para o almoço.

E assim, do Barreiro para Sintra, o Lenito voava, ultrapassando pela direita se fosse necessário, parando nas habituais filas, mastigando pastilha elástica.

Nesse dia, chegado a Sintra foi recebido com o olhar frio da mulher. Atrasara-se meia hora e a sogra gostava de comer a horas. O borrego tinha perdido a graça. E foi nesse momento que se sentiu mal. Sentou-se num banco de pedra junto à entrada e pediu um copo com água. Que disparate, iam almoçar! Um avião riscava o céu, ao longe. As abelhas zumbiam fazendo a ronda a um cacho da glicínia rosa que trepava ao longo da parede caiada. O resto… O resto foi fulminante.

E o Lenito passou a ser mais um número para as estatísticas.

Isabel Vidal

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